Não
bastassem os que discutem se o cristianismo é a verdade, há também os que
questionam sua possibilidade. Perguntam não apenas a respeito da relevância,
mas querem saber principalmente até que ponto o estilo de vida proposto por
Jesus pode ser encarnado na sociedade contemporânea. Como virar a outra face
sem ser massacrado pela violenta competitividade? Como perdoar setenta vezes
sete sem perder a dignidade nas mãos dos cínicos? Ou como deixar de odiar
aquele que estuprou a filha ou sequestrou o pai? São inquietações daqueles
honestos que sabem que o caminho da espiritualidade não é conceitual, mas
vivencial, na dinâmica que vai além do crer e se concretiza na experiência: o
discipulado implica não somente crer como verdade o que Jesus ensinou, mas fundamentalmente
andar como ele andou.
A ética
do sermão do Monte é possível no mundo contemporâneo? As proposições do
apóstolo Paulo não estariam condicionadas ao seu tempo e a seus contextos
cultural e social? Os mandamentos morais da Bíblia Sagrada ainda são caminhos
de vida, mesmo nesta sociedade pós-moderna? A sociedade pragmática confronta o
cristianismo não mais no debate a respeito da verdade, mas da funcionalidade. O
que a turma quer mesmo saber não é se o Evangelho é a revelação divina, mas se
esta revelação aponta na direção da felicidade imediata e da solução dos
problemas cotidianos, em que solução e felicidade estão de mãos dadas com
conforto, pouco ou nenhum sacrifício, resultados emocionais satisfatórios e
bem-estar pessoal.
Esta
abordagem a respeito da atualidade e da exequibilidade do cristianismo não está
presente apenas nos ambientes de oposição à fé evangélica, mas já encontra seus
articulados debatedores dentro mesmo dos nossos arraiais. Essas perguntas me
são feitas sistematicamente pelas pessoas que se consideram cristãs, de
confissão evangélica, muitas delas no meio de um conflito que as levou ao
gabinete pastoral, ou despretensiosamente em conversas informais, nas quais
pretendem esconder a angústia pessoal num debate displicente, como se falassem
a respeito de terceiros. Por exemplo, tenho sido chamado a responder se as
antigas afirmações dos crentes ainda estão valendo: sexo antes do casamento
ainda é pecado? Divórcio é pecado? Divorciado pode casar de novo? A gente tem
mesmo de pagar tudo quanto é imposto?
Não
estão de todo errados aqueles que assim questionam. De fato, uma coisa é
defender o sexo no contexto do casamento quando o ato conjugal era prática
imediata à puberdade, fruto de acordos familiares; outra coisa é falar de sexo
no casamento quando os nubentes não estão mais com 14 ou 15 anos, mas já com
28, ativos no mercado de trabalho e, obedientes aos pais, marcam a data do
casamento para “depois da formatura na faculdade”.
Não
resta dúvida de que a lei do divórcio foi promulgada muito mais em defesa da
mulher que, abandonada pelo marido, estaria exposta à infâmia, à rejeição
social e ao desprezo da família de origem; outra coisa é falar de divórcio numa
sociedade desenvolvida na defesa dos direitos individuais. Uma coisa é falar de
integridade fiscal para um grupo de pessoas identificado como minoria, lutando
para firmar seus alicerces e preservar sua continuidade histórica sob
perseguição do império; outra é falar para um povo cuja fé está consolidada,
detém nas mãos as ferramentas que possibilitam sua defesa diante de um Estado
corrompido e opressor, numa situação em que se defende até mesmo o terrorismo
contra toda e qualquer expressão de imperialismo.
Nossa bandeira é a cruz |
Alguém
poderia argumentar, então, que as bandeiras cristãs da virgindade, da
indissolubilidade do casamento e da sujeição às autoridades estão
ultrapassadas. Confesso que, de vez em quando, engrosso a fileira dos que fazem
perguntas. Mas tenho como certo que a discussão a respeito da ética cristã não
coloca em xeque a ética cristã em si, mas a sociedade que a questiona. O que
deveria ser discutido: a virgindade ou a erotização infantil? A
indissolubilidade do casamento ou a banalização da família? A sujeição às
autoridades ou a ausência de integridade daqueles que deveriam ser modelos do
viver?
Não
tenho dúvidas a respeito do valor e da propriedade do sexo restrito à relação
conjugal. Os danos da promiscuidade são incomparáveis. Vivemos numa sociedade
bestializada, onde as pessoas foram reduzidas à utilidade do corpo para o
fetiche de terceiros. A grande fome do nosso mundo não é de sexo, é de romance.
Os meninos já não querem mais uma gatinha para levar para a cama – querem uma
mulher com quem repartir o futuro. A grande reclamação das meninas é a falta de
“caras decentes”. Jamais imaginei debater com jovens no ocaso da puberdade e já
enfastiados de sexo. Todo esse frisson
erótico é virtual. Na intimidade dos casais, a discussão é a perda do apetite
sexual, a impotência, e as mulheres já não reclamam da falta de um pênis, e sim
da falta de um homem.
Também
não tenho dúvidas a respeito do valor e da propriedade do casamento “até que a
morte vos separe”. Aprendi que a gente não casa para ver se vai dar certo, mas
fazer dar certo. O compromisso conjugal não é um atalho para o prazer indolor,
mas um passo na direção da coragem para o autoconhecimento, da transformação e
do crescimento pessoal, no intercâmbio de forças e fraquezas, em que um faz o
outro melhor, muitas vezes às custas de atrito e faísca, pois somente assim o
ferro com o ferro se afia. Costumo dizer que durante a vida de solteiro nos
estragamos, e o casamento é a principal proposta terapêutica de Deus. Quem não
quer crescer, vencer limites emocionais, reescrever sua história, exorcizar
seus demônios, fica solteiro ou pula de paixão em paixão, em relações que são
eternas enquanto duram. Isso sem falar na saúde das futuras gerações e no
equilíbrio sistêmico possível apenas a uma sociedade que saiba valorizar a
família.
Finalmente,
continuo crendo no valor e na propriedade da sujeição às autoridades. Ou você
prefere o atual faroeste urbano e o caos que resulta do famoso “cada cabeça uma
sentença”, em que o fraco é oprimido pelo forte sem que ninguém se levante em
sua defesa, o rico espolia o pobre, o mal subverte o direito do justo? A
completa degeneração do sentido de autoridade, tanto de quem a exerce quanto de
quem a ela deveria se submeter, é uma peça necessária para qualquer debate que
se proponha a montar o quebra-cabeça da barbárie social em que vivemos. A
degeneração das relações entre pais e filhos, professores e alunos, idosos e
jovens acaba jogando no ralo a equidade das relações sociais. A integridade
fiscal entra nesse pacote. Ainda creio na taxação tributária como caminho para
a distribuição de renda, e que a corrupção generalizada não deve nos levar a
questionar a validade do tributo, mas a desenvolver mecanismos fiscais e
judiciais capazes de colocar esta laia na cadeia.
A esta
altura do campeonato, você deve se perguntar se meu próximo assunto não será em
defesa da tríade “tradição, família e propriedade”. Ainda não. Aproveito este
espaço apenas para expressar meu cansaço diante da hipocrisia e da
superficialidade do debate em torno da ética. Não consigo mais discutir
virgindade com consumidores de pornografia que se entregam sem restrições aos
instintos. Não consigo mais discutir indissolubilidade do casamento com jovens
cheios de arrogância que acreditam mais em Sartre do que em Jesus e andam
propagando que “o inferno são os outros”. Não consigo mais discutir sujeição às
autoridades com gente irresponsável, incapaz de um mínimo gesto de
solidariedade, e que não tem olhos para a pobreza, pois está ocupada em fazer
as malas para “descansar um pouquinho neste feriado prolongado”.
Ed René Kivitz [extraído de Outra Espiritualidade]
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